O rol dos crimes da súcia que tomou de assalto o governo na ressaca do impeachment – instrumento de um golpe de Estado bem mais profundo do que sugerem as aparências – registra a cada dia uma nova façanha.
É o coroamento de uma política de terra arrasada cujo objetivo é inviabilizar a reorganização nacional que pode emergir das eleições de outubro próximo como um clamor, se os deuses do Olimpo imperscrutável finalmente se apiedarem deste país falho em lideranças, pobre de sonhos e temente do futuro.
Os que não entendem o desafio não conseguem formular a alternativa oferecida pela experiência histórica, nossa e de outros povos em momentos similares, a saber, a construção da unidade política, mãe e pai da unidade eleitoral, desta feita e como sempre a alternativa de que dispõem as forças populares para constituir e desconstituir governos, no regime da democracia representativa.
Do geral da ação nociva do governo, ilegítimo pela origem e ilegitimado pela repulsa popular, ressaltam, de braços dados, a desorganização da economia e a destruição daquela ordem social que tenta harmonizar em níveis suportáveis, mas ainda longe mesmo da socialdemocracia, a dominação de classe.
Alguns de seus instrumentos são a legislação protetora do trabalho, virtualmente revogada, e a previdência social, ameaçada, como o SUS e os benefícios sociais de um modo geral. É nesse complexo que se explica a crise da indústria e a desnacionalização de nosso parque manufatureiro seguida da desmontagem de setores estratégicos para o desenvolvimento do país, e sua soberania.
Por isso, após desfolhar a Petrobras e praticamente entregar às petrolíferas internacionais a exploração do pré-sal, comprometendo já o consumo interno, volta-se agora o governo para a destruição do sistema Eletrobras.
Finalmente, e para nos atermos a alguns poucos itens, logra a ordem ilegítima, com a inestimável colaboração dos grandes meios de comunicação, a desmoralização da política (o que começa a preocupar nossos velhos e atrasados liberais), e a desorganização do Estado, de que resulta a mais grave crise da história republicana, porque questiona a legitimidade de todos os Poderes. A institucionalidade entrou em pane e caminha para o colapso.
Dos muitos crimes da hora presente destaco a intervenção militar no Rio de Janeiro. Trata-se de crime contra a Federação, contra a população fluminense e, principalmente, contra as próprias Forças Armadas.
O fracasso da intervenção, antevisto e anunciado, previsto como o passar das horas e certo como o correr dos dias, repetindo fracassos anteriores, igualmente anunciados, põe em xeque a imagem profissional do militar brasileiro.
Essa intervenção desastrada vem colecionando erros estratégicos e táticos e o grande saldo, se assim pode-se dizer, é, até aqui, o aumento da violência (que deveria estancar) e do número de vítimas civis, sempre moradores de favelas e periferias, atacadas como territórios do inimigo.
Suas vítimas, como de regra, contam-se quase sempre pobres e negros, vistos por nossas elites e seus agentes como cidadãos de segunda classe. Uns, em suas casas, nas vielas, em suas escolas, acocorados atrás de paredes, nos bares, são atingidos pelo que a crônica policial resolveu chamar de 'bala perdida', ou seja, fenômeno que deve ser assimilado como mera fatalidade; outros caem em confrontos e muitos outros simplesmente 'estavam na hora errada no lugar errado'.
No mais recente emprego da tropa, as Forças Armadas, associadas às bem conhecidas polícias civil e militar fluminenses, cumprindo mandados judiciais de prisão (nenhum procurado foi encontrado, assinale-se) eliminaram sete pessoas. Dentre elas, uma criança de 14 anos que, uniformizada, seguia rumo à escola.
O tiro de fuzil partiu de um blindado (sim, usam-se blindados contra a população civil, como se usam tanques de guerra e helicópteros) e os policiais e militares, contam as assustadas testemunhas, ainda retardaram, por "questões de segurança", a subida de socorro médico; ensejaram mortes, em outras condições, evitáveis.
Alguém foi atingido, não por uma "bala perdida". Nem corria em meio a uma troca de tiros. Atingiu-o projétil de trajetória certa, houve mira, um gatilho foi conscientemente acionado contra uma criança. Os assassinatos se somam por despreparo e desprezo humano.
Outra questão – bem diversa, conquanto igualmente agônica — é a necessidade do combate sem tréguas ao crime, todo ele, mas principalmente àquele que mais aflige a população, o chamado 'crime organizado' e suas terríveis ramificações no aparelho público em geral, e suas ainda mais terríveis, porque poderosas, conexões com o mercado globalizado, com o tráfico internacional e os paraísos fiscais. Trata-se de complexo tão poderoso, econômica, política e estrategicamente, que já se constitui em um Estado dentro do Estado, nos avisando de que amanhã poderemos ser o México de hoje.
Afora os néscios e os muito sabidos, como os plantonistas dos programas de rádio e de televisão, alguém acreditará que as ações dessa rede de gangsteres é comandada a partir da Favela da Maré?
Não se discute o combate à marginalidade, mas, nesse combate, o papel atribuído às Forças Armadas.
Na agonia do governo Temer, os militares são chamados a intervir na vida civil, desta feita com a tarefa de 'subir os morros' e reprimir o tráfico que alimenta a violência generalizada e organiza o crime. Nossas tropas são formadas por jovens recrutas, muitos oriundos das favelas em que agora vão atuar como policiais destreinados e mal-equipados, material e psicologicamente, todos expostos ao contágio da convivência com o submundo do crime que já corrompeu setores significativos do aparelho policial.
Há uma incompatibilidade insanável entre as funções do militar – condicionado para destruir sem se perguntar nem o quê nem o por quê, treinado para neutralizar ou eliminar inimigos (e para tal há que odiá-los!) e o papel do policial civil, teoricamente destinado a proteger a cidadania.
A intervenção, por essas e outras razões, não deu certo, e jamais poderia dar certo; seu resultado, além de nulo, é pernicioso para a Instituição e para cada soldado em particular, seja recruta ou oficial, pois, ademais, a missão de capitão do mato moderno o avilta.
Estamos vivendo – semeando para amanhã uma crise dentro da corporação – uma distorção que, não obstante gravíssima, foi sempre requerida pelas elites dominantes.
No Império, quando o escravismo não tinha mais condições de mascarar sua exaustão, o latifúndio autocrata exigiu que o Exército fosse posto a campear pelos matos à procura de cativos foragidos. A ordem não chegou a ser ditada porque o Marechal Deodoro da Fonseca teria prevenido seus superiores de que ela não seria cumprida.
Essa resistência, porém, se esboça apenas depois que as tropas, vencedoras, retornam do Paraguai, mas já nos primeiros anos da República, quando exercerá preeminência sobre os Poderes republicanos, o Exército é o agente do infame massacre dos camponeses de Canudos.
Ao tempo da Guerra Fria, a hegemonia dos EUA impôs às Forças Armadas, sem resistência, o papel de auxiliares de sua estratégia global no enfrentamento da URSS: "cuidem de seus problemas que da ameaça externa cuidamos nós".
Em outras palavras: Para quê Forças Armadas? Superado o conflito com a debacle da URSS, o papel de nossas Forças, novo ditado dos EUA, seria o de combater o narcotráfico, missão que a ditadura recusou, sem, porém, hesitar em colocar os militares a serviço da repressão contra a insurgência contestatória. Era a doutrina do 'inimigo interno' opção política, ideológica e estratégico-militar editada pela Escola Superior de Guerra, depois de formulada pela Escola das Américas, mantida pelos EUA no Panamá.
Mutatis mutandis, a história se repete, quando, abandonando seu papel constitucional - a segurança nacional, nossa independência, a integridade de nossas fronteiras, nossa projeção internacional, enfim, a garantia de nossa defesa em face de um eventual agressor externo - , as Forças Armadas são chamadas a eleger como alvo, de novo, o 'inimigo interno', desta feita o submundo do crime, organizado por narcotraficantes e suas dependências.
E a história se repete, sem que vozes democráticas patrocinem a necessária formulação de uma política de segurança pública à altura dos desafios presentes, porque, desde a redemocratização de 1985, optaram as esquerdas - ainda olhando para o regime decaído - por deixar de lado a discussão do desafio, como se ele fosse de interesse apenas de especialistas, ou disciplina do currículo privativo de militares, e assim o tema foi ora relegado a plano secundário, ora elevado à categoria de tabu. Não é, não pode ser, numa democracia, nem uma coisa nem outra.
Nas megalópoles do planeta, pois a violência urbana não é uma especificidade nossa, trata-se de questão que interessa a todos pois a todos diz respeito e assim é objeto de reflexão e análise política e acadêmica, pois sua simplificação, leva a mais e mais matanças, sempre de pobres. Mas entre nós, ao invés de promovermos políticas de proteção da cidadania, estimula-se a repressão pela repressão que tende a consagrar-se num direito reacionário, penalista, punitivista, tão ao gosto de um Judiciário classista e autoritário, como este nosso de hoje.
Na sua esteira, esvai-se a democracia.
Enquanto isso, e talvez por isso mesmo, relega o governo a plano secundário os projetos estratégicos, não apenas os de ordem econômica, mas igualmente aqueles que olham para a segurança nacional, como o programa espacial, destruído, e cujo enterro sem pompa será a entrega da base de Alcântara, no Maranhão, aos EUA, que dela não precisam, mas que, tendo-a, impedem que a tenhamos.
Como a destruição da indústria aeronáutica militar, mediante a venda da Embraer, como a paulatina mas perseverada política de esvaziamento da construção de nossos submarinos, convencionais e de propulsão nuclear, como o arquivamento do projeto de defesa aérea.
Como se vê, tudo tem lógica.