Achei isso....de março de 2013....
professor do departamento de filosofia da USP e encarregado de
cursos no Colégio Internacional de Filosofia – Paris.
Lições do poder
Os três principais erros do governo petista e como eles servem de aprendizado à esquerda
Dois anos e meio se passaram desde que o governo Lula tomou posse. Trata-se de prazo
suficiente para a avaliação desta primeira experiência de governo resultante da eleição
de um partido ancorado à esquerda no espectro político brasileiro. Uma coisa é certa:
ela marcará, de maneira decisiva, a próxima década da nossa história política. No entanto,
resta ainda saber em qual sentido.
Ainda é difícil dizer se a probabilidade de continuidade dos petistas no poder é real.
Não sabemos qual o impacto e o desdobramento dos últimos escândalos políticos que
alimentam a mídia. Não sabemos ainda qual é a força dos petistas em expor realizações
na reta final do primeiro mandato. Mas certamente podemos tirar algumas lições a
respeito dos erros e acertos da esquerda no poder. Erros e acertos que já estão
relativamente claros para quem acompanhou com atenção o desenrolar destes dois anos e meio.
Politizar conflitos de classe
O primeiro erro, talvez o mais grave, diz respeito à compreensão do que deve ser o motor
político das ações de um governo de esquerda no Brasil. Por mais anacrônico que isto
possa a princípio parecer, fica cada vez mais claro que, no Brasil, um governo de
esquerda não pode, em hipótese alguma, abandonar a perspectiva da politização
de conflitos de classe. Isso significa que suas ações principais devem ser pautadas
pela realidade de interesses antagônicos e inconciliáveis de classe. Neste contexto,
o governo deve necessariamente escolher um lado e mostrar claramente à opinião
pública que escolheu um lado.
A necessidade da centralidade dos processos de politização de conflitos de classe
é talvez uma peculiaridade nacional, ou melhor, regional (já que diz respeito à toda
a América Latina). Em países de classe média grande e desconcentração relativa de
renda feita através de tributações pesadas (França, Alemanha, Escandinávia etc.)
uma estratégia desta natureza não parece tão premente.
No Brasil, a situação é outra. Estamos falando, como todos sabem, de um país que
tem a segunda pior distribuição de renda do mundo, perdendo apenas para a Serra
Leoa que, por sinal, acaba de sair da guerra civil. Um país cuja fratura social é tamanha
que a classe concentradora de renda tende a, cada vez mais, viver em uma “cidade virtual”
construída por rotas de helicópteros particulares que ligam condomínios de alta-segurança
a shopping-bunkers (para usar uma expressão feliz de Alcino Leite Neto). Ou seja, tende a
viver no interior de uma lógica de guerra civil. Neste contexto, um governo de esquerda deve
saber explorar a fratura social.
O que isto significa concretamente? Significa, por exemplo, criar uma agenda de
reformas que, desde o início, coloque tal fratura como problema maior da sociedade
brasileira. Neste sentido, vemos hoje que a primeira reforma que deveria ter sido
sugerida pelo governo petista não poderia ser a reforma previdenciária (que nunca
esteve na pauta de discussões da esquerda e que apenas serviu para dividir seu campo).
A primeira reforma deveria ser uma reforma tributária.
Não uma reforma como quer a direita, com diminuição de impostos que irão comprometer ainda
mais a manutenção dos serviços públicos, como saúde e educação. Mas uma reforma tributária
classicamente de esquerda, com taxação pesada sobre grandes fortunas, aumento progressivo de
imposto de renda até alíquotas de 45%, imposto sobre heranças, aumento pesado de impostos
sobre consumo de luxo, sobre lucros bancários e remessa de divisas, entre outros, isto a fim de
financiar gastos redobrados em serviços sociais e a criação de uma rede mínima
de seguridade social.
Sabemos que o discurso da tributação excessiva no Brasil é uma falácia. Uma comparação
simples demonstra que a carga tributária da classe alta no Brasil é baixa em relação a outros
países que conseguiram oferecer um sistema de seguridade social e de serviço público à toda
a população.
Nada disto é novo. O receituário é classicamente social-democrata, mas implementado no Brasil,
ele poderia ter sido um sinal claro da disposição do governo de reconhecer uma fratura social
que não é resultante de um problema de baixo crescimento econômico, até porque o Brasil é
um país que já cresceu a altos níveis sem que isto afetasse sua estrutura de distribuição de
renda. O problema brasileiro é um problema de redistribuição, e não apenas de crescimento.
Um problema não se resolve por meio do outro.
Valeria a pena lembrar aqui de que a desmobilização da politização de conflitos de classe
apenas resultou em uma estranha inversão. Tínhamos medo de que um governo petista não
funcionaria por acirrar em demasia antagonismos sociais. Agora vemos que o verdadeiro erro
foi não ter sabido ressaltar os antagonismos sociais fundamentais.
Neste sentido, a ironia maior do processo é sermos obrigado a reconhecer que Lula teria, sim,
algo a aprender de Hugo Chávez. Não se trata aqui de fazer a defesa do presidente venezuelano,
personagem que, em larga medida, é apenas mais uma encarnação do populismo personalista
de esquerda que assola o continente latino-americano e impede o verdadeiro desenvolvimento de um projeto de radicalização democrática.
No entanto, não há como negar que sua força diante da oposição veio exatamente o fato de ele
ter tido a inteligência de politizar conflitos de classe, dando expressão a um clamor secular
de justiça social. Por seu lado, o governo petista conseguiu a façanha de desmobilizar
radicalmente seus eleitores orgânicos e os movimentos de bases que giravam em sua órbita, isto
exatamente por não politizar os conflitos de classe.
Ampliar a participação na democracia
Um outro erro importante diz respeito à natureza do que poderíamos chamar de “composição
política para garantir a governabilidade”. O núcleo estratégico e pensante do governo
compreendeu isto como negociação demorada com o Congresso.
Lembremos como, no
primeiro ano de governo, Lula afirmava ter diante de si um governo que mostrava ser um bom
negociador com o Legislativo. No entanto, vemos agora qual o preço da negociação.
De fato, a democracia parlamentar brasileira conseguiu chegar a um impasse.
Práticas e
denúncias de “compra” de deputados são tão antigas quanto o início da Nova República e,
desde lá, permaneceram ininterruptas. Elas continuarão, com ou sem PT. A razão disto não
é um pendor maior do brasileiro para a corrupção. Este é um mal mundialmente tão bem
partilhado quanto o bom senso, segundo Descartes; este mesmo bom senso que todos julgam
ter tanto que ninguém se diz insatisfeito com o quinhão que lhe cabe.
A razão de práticas desta natureza é uma aberração própria ao Parlamento brasileiro e à
estrutura do nosso “presidencialismo de coalizão”. Este deve ser o único Parlamento no
mundo em que é simplesmente impossível a um partido ter a maioria absoluta das cadeiras,
ou seja, 257. Desde a redemocratização, nunca nenhum partido conseguiu alcançar esta marca
e nunca conseguirá. Isto faz com que o Congresso seja um verdadeiro “balcão de negócios”
no qual um Executivo sempre fragilizado (já que necessita de alianças heteróclitas com vários
partidos para governar) sai perdendo.
A verdadeira reforma política (esta que deveria ter sido posta na pauta de discussões logo no
primeiro ano de governo) deve permitir situações eleitorais nas quais o vencedor leva tudo,
ou seja, uma parte das cadeiras deve estar vinculada, necessariamente, ao partido vencedor,
isto a fim de permitir que ele possa fazer maioria congressual mais facilmente (ou, ao menos,
uma minoria qualificada).
Mas, enquanto não tínhamos uma reforma política, o que deveria ser feito? Talvez a resposta
correta seja: o governo deveria ter “esvaziado” certas atribuições do Congresso, através da
criação e aprimoramento de mecanismos diretos de participação popular. Este é o outro ponto
que deve estar necessariamente em toda discussão sobre a reforma política.
Um governo de esquerda não deve deixar de criticar instituições que funcionam mal e perpetuam
distorções. Ele deve modificar instituições e criar mecanismos eficazes de democracia direta
e plebiscitária que fortaleçam o peso político da sociedade civil organizada (sindicatos,
movimentos de base, movimentos de trabalhadores, organizações classistas de toda natureza etc.).
Mecanismos que, inclusive, tirem a ação de certas organizações classistas do foco no lobby,
levando-as para o confronto aberto com outros atores da sociedade civil. Em última instância,
o governo deve, muitas vezes, saber mobilizar a população contra o Congresso, pois nem sempre
o Congresso representa o interesse da maioria.
Um exemplo recente e extremamente pedagógico ocorreu na Espanha de Aznar, onde o Congresso,
capitaneado pelo primeiro-ministro, votou a entrada do país na guerra do Iraque, mesmo com
uma reprovação maciça por parte da população. Em situações desta natureza, não devemos esperar
as próximas eleições para tirar os congressistas do poder: devemos, ao contrário, ter mecanismos
que permitam à população organizada evitar que o Congresso decida algo que contraria os seus
interesses.
Não se trata aqui de propor alguma forma de política de liderança baseada na idéia de um vínculo
orgânico entre o chefe e a massa. Trata-se de implementar um mecanismo de participação popular
direta nos processos decisórios através da pulverização das instâncias de poder: o que nos levaria,
é verdade, para além da democracia parlamentar, mas não para aquém da democracia efetiva.
Isto apenas nos permite afirmar, com toda clareza: a democracia parlamentar não é o último
estágio de realização da democracia. Ainda temos muito caminho a trilhar.
Pode parecer que idéias desta natureza nos levem necessariamente a alguma defesa obscura da
obsolescência do Parlamento. Isto soa ainda mais pesado em um país como o Brasil, que viveu
durante décadas com o Congresso submetido às amarras da ditadura militar. No entanto, temos
atualmente todas as condições materiais necessárias para transferir parte da gestão do poder hoje
alocado no Legislativo e no Executivo para estruturas de democracia direta. Isto não significa uma suspensão da democracia, mas um aprofundamento democrático.
A maior questão para a democracia consiste em inverter a tendência de esvaziamento da
participação popular, tendência que aparece, por exemplo, nas baixas taxas de comparecimento
às eleições, com o conseqüente crescimento dos extremos políticos. Isto implica necessariamente
em esvaziamento de certas atribuições do Parlamento (como modificações constitucionais),
não em prol do fortalecimento do Executivo, mas em prol da implementação de mecanismos
de participação direta.
No entanto, em uma realidade como a brasileira, não creio que alguém duvide que é o Executivo
que deverá ser o poder reformador. Mas, para que o governo petista tivesse força suficiente para
inaugurar um processo desta natureza, ele não deveria ter cometido o primeiro erro, este que
diz respeito à politização de conflitos de classe. Feito o primeiro erro, o segundo era simplesmente
inevitável.
Agendamento midiático
Por fim, um terceiro erro, não menos importante. Ele diz respeito às instâncias que agendaram
as ações do governo. Durante estes dois anos e meio, o governo, em vários momentos, deixou-se
pautar em larga medida pela mídia, isto quando a pauta não vinha diretamente da própria oposição.
Esta permeabilidade à mídia constitui um erro extremamente revelador, já que a mídia nem
sempre é uma instância de mediação entre Estado e sociedade. Este não é apenas um problema
brasileiro, mas diz respeito a uma das questões centrais para a democracia nas próximas décadas.
No mundo inteiro, a mídia transformou-se em um dos setores mais oligopolizados da economia,
o que, salvo raras exceções, dificulta a expressão simétrica de uma pluralidade de opiniões.
Uma das questões fundamentais para a democracia hoje consiste em encontrar outros modos
de visibilidade do poder que não seja a visibilidade midiática.
Um exemplo didático deste modo de agendamento do governo ocorreu logo nos primeiros
meses, por ocasião do lançamento do programa Fome Zero. A princípio, tratava-se de um
programa simples que consistia, principalmente, na distribuição de cartões de desconto para
pessoas de baixa renda a serem usados em supermercados e padarias. Em certo momento,
setores da mídia levantaram discussões como: “assistencialismo parternalista” e “o cartão
pode ser usado para comprar bebidas”. A segunda colocação era uma verdadeira pérola
derivada de preconceitos imemoriais de classe que remetiam à teoria de que “não se deve
dar esmola para pobre porque eles gastam tudo com cachaça”.
A primeira colocação, por sua vez, era simplesmente infundada. Todo país decente tem
uma política de transferência direta de renda que funciona a partir do momento em que
seus cidadãos caem abaixo de um certo patamar de pobreza. Na França, por exemplo,
eles recebem dinheiro em conta e ninguém teve a idéia de perguntar se o beneficiário
gasta tudo com bebida ou não. Isto é apenas o resultado de um princípio correto: a partir
de um certo limiar de pobreza deve haver transferência direta de renda, único método eficaz
para impedir que parcelas da população caiam diretamente na miséria.
No entanto, o que ocorreu logo em seguida às críticas? O governo deixou-se pautar por elas,
transformando um programa simples que, certamente teria seu lugar no interior de políticas
amplas de distribuição, em um programa obscuro e difícil de visualizar. Isto era apenas
mais um sintoma extremamente revelador de uma noção equivocada sobre a esfera do político.
O governo agiu como quem acredita que a integralidade da esfera do político passa pela mídia.
Ou seja, ele agiu a partir de um conceito publicitário de política e, ao perceber isto, a sociedade
civil deixou de dar crédito ao programa do governo. Neste momento, ficou evidente que o
governo mirava, sobretudo, sua imagem na mídia. Mas o verdadeiro desafio para a política
contemporânea consiste em criar novos processos de visibilidade do poder. Isto, em larga
medida, não foi sequer posto como estratégia de ação.
Um ajuste de foco
Dito tudo isto, fica a sensação de que os erros, por tocarem em pontos estruturais e se
acrescentarem a uma política econômica lastimável, tendem a suplantar os acertos do
governo em política externa, em educação (elaboração de uma reforma universitária que
rompe com a tendência ao esvaziamento da universidade pública), em política de energia
e em suspensão do processo de privatização e de desmonte da estrutura técnico-gerencial
do Estado.
No entanto, à questão sobre que postura adotar diante deste governo e, principalmente,
que postura adotar diante das próximas eleições presidenciais, eu tenderia a transplantar,
para o nosso cenário, uma afirmação de Slavoj Zizek, nome fundamental em qualquer
debate a respeito da renovação do pensamento de esquerda:
“Como, então, responder ao eterno dilema da esquerda radical? Devemos apoiar
estrategicamente figuras de centro-esquerda como Bill Clinton contra os conservadores
ou devemos adotar a postura de ‘não importa, não devemos nos meter nessas
brigas -de certo modo, é melhor que a direita esteja no poder, desse modo, fica
mais fácil para o povo enxergar a verdade da situação’? A resposta é uma variante
daquela que Stalin deu à pergunta: ‘Qual desvio é pior, o de direita ou o de
esquerda?’: ambos são piores. O que devemos fazer é adotar a postura do
paradoxo dialético: em princípio, é claro, deve-se estar indiferente à disputa entre
os pólos liberal e conservador da atual política oficial -no entanto, só é possível ser
indiferente se a opção liberal estiver no poder. Do contrário, o preço pode ser alto
demais” wrt_note() 1.
Basta lembrar do que disse um membro do antigo governo tucano, à época, a respeito
do MST: “Terroristas”. A partir de declarações deste tipo, e do desprezo congênito do
tucanato por movimentos populares, podemos imaginar o que viria por aí. No entanto,
não deixa de ser deprimente ter diante de si uma política baseada no cálculo do pior.
1
- Zizek, "Às portas da revolução", p. 330.